Texto da exposição
Individual - Marca de água
Museu do Dinheiro, Lisboa 2017
A persistência do lugar - Leonor Nazaré
Paradoxal, quase
provocadora, a transformação de um espaço que foi uma igreja em Museu do
Dinheiro desafia a nossa habituação a todas as profanações; o mundo da finança,
em vez de expulso, é chamado a habitá-lo. Duas hipóteses se colocam a cada
artista que é chamado a inscrever trabalho no lugar: pensar a obra no encontro,
mesmo que remoto, com o projeto e o conceito do Museu, ou pensá-la atravessada
pela memória do que foi o edifício noutros momentos do passado. Carla Rebelo
escolheu esta segunda possibilidade, que a desafiou profundamente. As duas
obras inéditas que pensou para o local desenterram-lhe as memórias. A obra que
ocupa o coro alto, e que expôs em 2016 no Palácio de Oeiras, refaz neste a
relação que teve com aquele lugar; um chão de espelhos parcialmente pintados
reflete o teto, trazendo-o em mergulho extensivo para a sua superfície,
esmagando, nessa ilusão espacial, o eixo vertical que qualquer espaço
arquitetónico oferece sempre e, por maioria de razão, uma igreja. Fragmentado,
abundante, invadido por “sombras” (manchas pretas pintadas), o painel comenta a
própria ideia de divisão e/ou multiplicação que o espelho contém, sugere um
espaço móvel e “falso”, enaltecendo o desenho do lugar com o seu brilho e a sua
gramática; sugere fluidez da luz, liquefação, abertura fácil, mentirosa e
irrequieta à aparição da imagem.
Mas a verticalidade é
chamada a exprimir toda a sua pujança na obra que Carla Rebelo instala no
espaço que foi o do altar. Nele opera um modo arqueológico inusitado pelo qual
as camadas (de memórias) surgem suspensas e elevadas no ar em vez de
enterradas: a artista tece o desenho de três muralhas, revela duas plantas da
igreja, desenha funções posteriores do edifício, recria a luz. As quatro
camadas de informação que nos propõe, devolvendo ao lugar a referência às
sucessivas experiências humanas que abrigou, relembram a igreja de antes e
depois do terramoto, as muralhas da Cerca Moura, de D. Dinis e a Fernandina, as
utilizações como parque de estacionamento e como cofre-forte, já no século XX.
Ao mesmo tempo constroem um trompe l’oeil, apreensível de vários pontos de
vista, homenageando a intensa relação que a igreja portuguesa estabeleceu com a
estética barroca, e o próprio princípio barroco da encenação das dobras
infinitas do espaço, do tempo, do sagrado, do humano, da luz, da perceção, do
devaneio e do enigma.
A terceira peça surge ainda
a partir de imagens da igreja, já dessacralizada e descarnada até à estrutura
de madeira. A artista recupera delas o desenho de arcos romanos e em ogiva para
construir uma porta, um pórtico, janela, arco, barco, barriga de baleia do
qual/dos quais dá a ver o esqueleto, fundindo assim substância arquitetó- nica
e sugestão orgânica, convite à travessia e intimidação, acolhimento e
recolhimento, coleção e recoleção, abrigo e passagem. O derrube da parede de
fundo da estrutura franqueia a entrada, a parede cede, os tijolos espalham-se e
deixam de ser muro compacto, o contorno torna-se sombra e já não matéria,
avesso da luz ou consequência dela e portanto desmaterialização. A memória de
uma deslocalização concebida mas não realizada levou a uma recreação: teria
sido preciso esventrar, desfazer, deslocar, refazer, mas não chegou a
acontecer. A obra pega no movimento que estava dentro dessa ideia e representa-o,
torna-o presente de novo: com alguma emoção (movimento) e delicadeza, mas
também com força e determinação; fazendo referência a uma realidade observada
mas também com instauração de uma fantasia; com a projeção da desordem dos
tijolos espalhados mas também com a atenção dada aos algarismos que os
numeraram, na previsão de uma reconstituição exata. A imagem no tempo é feita
por estes indícios no espaço, pela materialidade da escultura tornada
citação, comentário e concetualização da arquitetura e da História. A regressão
temporal e a inquietação espacial que as três obras propõem faz-se com o
levantamento das ossadas, com o esqueleto e a sombra, os enganos e sortilégios
especulares, as sobreposições, a estratigrafia, as forças, os pontos de vista.
Nenhuma das três peças pode ser conhecida sem a mobilidade do observador, o seu
empenho físico real, os seus passos perdidos. In situ: as obras endossam o
lugar, integram-no ao integrar-se nele. Poinsot (1) fala disso quando explica até
que ponto o lugar pode ser campo e matéria da obra e esta ser recorte visual e
semântico de um mundo ou espaço mental que cabe ao observador reconstituir. A regressão mnésica é
também retorno à pele que cobriu estes ossos (e que a sombra evoca), que
envolveu estas estruturas de coisas desaparecidas e desmoronadas por outros
usos e ambições; é retorno ao volume contido nessas superfícies, nestes
perímetros que o desenho recupera. A pele também tem as suas camadas e como se
lê em Paul Valéry, é mesmo o que há de mais profundo (2). No diálogo em que o
argumenta, a personagem lembra a formação do embrião humano a partir duma
ectoderme que se fecha e dá origem a todo o organismo. O cérebro, a medula
óssea, a capacidade de sentir e pensar derivam e dependem dessa pele e, por
muito que se escave, é à pele que o homem chega na mais recôndita profundidade
de si mesmo. Muitas esculturas, e certamente as da Carla Rebelo têm isto em
comum com a arqueologia e a arquitetura: o interesse pelo esqueleto (os fios
entretecidos, as estruturas erigidas, os desenhos e camadas sobrepostos, os
cabos esticados) e a imaginação do seu preenchimento, até à pele - um perímetro
desenhado, uma sombra projetada, uma miragem ou epifania num qualquer altar de
uma antiga igreja, de uma antiga Lisboa, uma presença nova que designa a
memória para transfigurá-la.
Dessa antiga Lisboa,
importa dizer que o local perto deste, onde se encontra a sede do Banco de
Portugal, foi uma zona de forte atividade comercial e financeira a partir do
século XVI; que a Igreja de S. Julião veio somar-se às instalações do Banco nos
anos de 1930 e teve, desde aí, diferentes utilizações, até às obras recentes,
que a transformaram em Museu do Dinheiro. A História e as vicissitudes da
Igreja (estatuto Patriarcal, antes do terramoto, reconstrução luxuosa pelo
plano do Marquês de Pombal, no século XVIII, incêndio violento, nova
reconstrução, escavações, incorporação de materiais antigos, descoberta das
linhas de muralha) informaram e mobilizaram o trabalho da artista, que trouxe
para as obras a “marca de água” (também associável à impressão do dinheiro em
papel), a identificação indelével de cada momento.
E se a peça colocada no
espaço do altar assume o título que é também o da exposição, Marca de Água, é
no coro alto que O Sonho de Orfeu, exposto em 2016 no Palácio do Marquês de
Pombal em Oeiras, mais nos remete, por um lado, para a sobreposição da planta
medieval de Lisboa (o desenho a preto) ao plano da Baixa pombalina (a
disposição dos retângulos espelhados) e, por outro lado, para aquela exposição,
realizada sob o signo da água, a que a artista chamou Becoming Water. É o
passado da cidade que é aqui recuperado mas é também a proximidade da água e a
sua abundante presença em galerias subterrâneas, que aqui se insinua – a água
que ouvimos, o ano passado, na instalação sonora realizada num corredor do
palácio de Oeiras; cujo curso imaginá- mos na grande represa em madeira que ali
expôs (roda e sulcos longilíneos); a água do lago do Palácio sobre a qual teceu
fios de algodão vermelhos (3); tessitura e narrativa infinitas (Penélope e
Ulisses), resgate a partir das trevas (Orfeu e Eurídice) (4). A imagem de
Orfeu foi a do teto do Palácio, numa das salas, espelhado pela peça de chão,
que agora reflete outra arquitetura; mas o nome de Pombal (5) está colado à
memória dos dois lugares, à assinatura da (re)construção e da monumentalidade.
O pórtico de madeira e os
“tijolos” espalhados da terceira obra absorvem de novo os sinais do lugar: as
janelas mais altas e a sua sombra projetada em ogiva; a ideia de construção.
Numerados até 1800 para uma deslocalização que não se efetuou, e uma vez
apagados, todos os números, em operação prolongada de restauro, as pedras são
aqui designadas por unidades de madeira que a artista numera a partir daí. A
coincidência da data de inauguração da igreja neoclássica, em 1802, é apenas
mais uma malha no cerco simbólico apertado da referenciação. O incêndio de 1816
voltará a reiniciar o ciclo da destruição e da reconstrução. O fogo e a água
desafiam a persistência do lugar, com as suas “marcas”, a sua exigência de
depuração. Com eles e sobre eles se escrevem os autos do que aconteceu, se
gravam os livros (6) da memória: esculturas, espaço, números, tramas, sombras,
espelhos, evocação.
1. Jean-Marc Poinsot, “In
Situ, lieux et espaces de la sculpture contemporaine”, in Qu'est-ce que la
sculpture moderne? Paris : Centre Georges Pompidou, 1986, p. 322-329.
2. Paul Valéry, « Idée Fixe
ou deux hommes à la mer », in Œuvres, Bibliothèque de la Pléiade, Paris:
Gallimard, 1988, Vol.II, pp.215-218.
3. No palácio de Oeiras, em
2016, uma das peças era constituída por uma malha de fios vermelhos cruzados
sobre a água do lago. Uma outra peça, Sala de Jogo, incorporava também fios
estendidos, desta vez entre cadeiras, evocando ligações entre pessoas e
estratégias lúdicas.
4. Remeto para o texto de
Maria João Gamito, “O Devir da Água”, no folheto que acompanhava a exposição,
para outros matizes desta analogia. Lembro ainda a peça Penélope, na mesma
exposição, que trabalhava a ideia de espera e viagem interior.
5. No palácio de Oeiras, em
2016, uma das peças era uma gaiola de grandes proporções na qual a artista
sobrepunha a evocação dos pássaros do jardim, um pombal existente na
propriedade e a técnica pombalina de construção de prédios “em gaiola”.
6. Na instalação A Biblioteca das Musas que realizou na Sala do
Conhecimento (Palácio de Oeiras, em 2016), reuniu as nove Musas, com um livro
de artista para cada uma, inspirado no conhecimento que cada uma representa.
Grande parte desses livros integrou, entretanto, a coleção de livros de artista
da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.