Um Gabinete de Gestos Mínimos
a propósito da exposição Segundo o seu Próprio Tempo de Carla Rebelo
na Galeria Diferença, em Lisboa
Sofia Ponte


Não há como fixar o tempo. No entanto podemos pensar o tempo, visualizando-o em algumas situações poéticas, como numa visita a um gabinete de gestos mínimos. Um gabinete que apresenta uma noção de tempo sobre uma perspetiva subjetiva, provocando emoções e estados de espírito em vez de referenciar realidades visíveis. Uma exposição é um dispositivo social e simbólico que define, organiza e comunica ideias. É uma etapa dinâmica e flutuante, que gera valores e significados que variam consoante o seu contexto. Esta exposição individual é um projeto de Carla Rebelo que prolonga algumas das reflexões desenvolvidas na sua última exposição “Um Momento que se Repete Continuamente” (2018). Também aqui a exposição propõe um percurso por trabalhos com uma escala manobrável onde o legado do têxtil, do minimalismo impuro e do apropriacionismo se conjugam de diversas formas, e onde se confirmam, a meu ver, princípios que representam momentos de grande inventividade e reflexão.

O significado de uma obra de arte é muitas vezes uma questão específica à arte e ao enquadramento contextual e conceptual das exposições em que a mesma é apresentada. Designar um objeto como arte é destacá-lo do contexto banal dos objetos e valorizá-lo de acordo com conceitos validados por uma comunidade, e diz mais sobre a pessoa ou o grupo de pessoas que conduz um objeto para um circuito seletivo de coisas materiais, do que propriamente sobre o objeto em si. Ou seja, uma obra de arte é o produto de escolhas, decisões e circunstâncias de uma operação que não é diferente daquela que define um determinado objeto, por exemplo, como um artefato. Um objeto adquire a função de um símbolo estético ou de um símbolo da cultura material, de uma dada comunidade, através de operações culturalmente convencionadas e determinadas por práticas sociais geradas pelo contexto de funcionamento em que essas operações ocorrem, contexto este que está em constante mudança.

É, por isso, necessário conhecer e reconhecer os intervenientes deste enquadramento. Comecemos pelo conceito de gabinete de gestos mínimos que atribuo a esta proposta e, que dialoga com a arquitetura da Galeria Diferença que tão bem acolhe esta exposição. Este gabinete, é um espaço estilizado de estudo, de ensaio e de jogo que incorpora elementos naturais e artificiais. “Sala de Jogo” (2016) é aliás a instalação que marca uma presença dupla nesta exposição. É um espaço arquitetónico físico e mental, entre figuras reais e imaginárias, que impõem o contexto como conteúdo. Este gabinete de gestos mínimos ergue-se assim entre paredes de cimento e de vidro, de luz e de sombras. Tem uma função meditativa, que neste caso específico serve como uma ajuda para pensar o conceito de tempo.

O tempo na verdade não existe. Existe apenas quando procuramos compreender o seu significado, quando o pensamos. À artista interessou-lhe pensar o conceito de “tempo circular” mais próximo da ideia de “tempo interior” e mais afastado do conceito de “tempo linear” (que estabelece um passado, presente e futuro ou que organiza um dia em 24 horas e as horas em minutos, segundos, e por aí fora). Assim o “tempo circular” pode assumir qualquer forma. As formas que assume neste gabinete são em geral geométricas, isto é, são círculos justapostos, são cones interligados, são tramas, são quadrados e retângulos sobrepostos em materiais como a madeira, o cobre, o fio têxtil, a resina, o alumínio, o ferro, a tinta e uma série de objetos recoletados, tais como bobines e lançadeiras têxteis, papel, casca de árvore e outros fragmentos quase impercetíveis. E as ideias que preenchem este gabinete são ideias sobre simplicidade que encorajam a faculdade da contemplação e da meditação, a partir de múltiplos pontos de vista narrativos.

Desafiada pela ação de expor a sua prática, a artista demonstra que a materialização de obras de arte depende de estratégias simbólicas de designação. Carla Rebelo, indica que estes objetos são “dispositivos para gerar pensamento” para si, e talvez também para outros.  Com uma predisposição pensativa, o visitante poderá então, encontrar alguns dos gestos mínimos que estão na origem destas obras. Gestos que surgem a partir de metodologias mensuráveis e sistemáticas, que por vezes se movimentam suavemente, produzindo simetrias e repetições visuais que não se desviam da sua intenção: mostrar várias perceções do tempo interior. Por exemplo, o gesto de tecer tramas de um “Livro de Horas” que a cada “virar de página” apresenta uma teia mais larga numa espécie de esquecimento do pensamento tecido. Ou então o “Livro do Compasso de Espera” onde um papel pautado é exposto a tempos de tintagem distintos, dando origem a um ritmo cromático que contém um diagrama aleatório da passagem daquele tempo. Ou ainda as “Ampulhetas do Vazio” que encerram todos os tempos. Assim continua a artista a dar corpo a ideias que não têm corpo, nem espaço, mas que demonstram ter um compromisso com a reflexividade, o rigor conceptual e a literalidade.

Este texto foi organizado após uma visita ao atelier da Carla Rebelo, em fevereiro de 2020. Uma segunda versão será proposta após visita à Galeria Diferença. Porque as exposições também determinam o significado das obras, e só assim se pode partilhar dimensões do pensamento que surgem depois de se interagir com o espaço das obras expostas. Muitas vezes remetido para um plano secundário o processo de exposição deve ser entendido como um exercício onde intervêm mais significados do que aqueles inicialmente previstos. Um objeto em exposição é um objeto relacionado com as intenções e conceito da artista que criou o conceito da obra e relacionado com a operação de valores a que esta vai ser, e é, sujeita no contexto de exposição. Falta, por exemplo, referir o dispositivo concebido pela artista para olhar cada uma destas obras à luz e à sombra, em solidão ou em companhia.


Porto, 2 de março 2020.