Texto da exposição Individual "Becoming Water"
Palácio do Marquês de Pombal, Setembro /Outubro de 2016
Maria João Gamito
Maria João Gamito
O DEVIR DA ÁGUA
Incontáveis
fios de seda, de algodão e de materiais diversos, oito cadeiras, uma delas geminada,
quarenta e um espelhos planos, uma gaiola, nove livros de artista e o rumor da passagem
da água são os elementos que Carla Rebelo põe em contacto nesta exposição, implicando-os
no movimento das coisas para as coisas e na inevitável mudança que de cada vez as
faz surgir como outra coisa no devir de todas elas, ou no rumor que as dá a ver
e a ouvir.
E será sobretudo
de rumor que se trata, ou de rumores: o rumor mnemónico da água a correr, mas
também o da cadência maquínica da metamorfose das máquinas, aqui entendidas
como engenhos, invenções ou recursos manifestos na absorvência dos objectos e
na obliquidade das imagens; o rumor das teias conceptuais, espaciais e
temporais em que esses objectos e essas imagens convivem, tutelando a
referência à figura do Marquês de Pombal – proprietário do Palácio que acolhe a
exposição – e o rumor das suas medidas reformadoras; o rumor dos objectos
ópticos pertencentes ao espólio do Gabinete de Física, constituído em 1772 no
âmbito da reforma da Universidade de Coimbra (actual Museu de Física da
Universidade de Coimbra), e o rumor das imagens fixadas pela Enciclopédia de Diderot e d’Alembert, no
contexto da disposição inventariadora do mesmo século; o rumor das Metamorfoses de Ovídio, o rumor dos
mitos a que aludem diversas pinturas em estuque, painéis de azulejos e
esculturas que decoram o Palácio e, subjacente a todos eles e como eles prisioneiro
do presente eterno da sua passagem, o rumor da memória que tanto traz a
lembrança da maternidade das Musas e dos domínios de conhecimento que elas
encarnam, como a do rio do esquecimento de que é preciso beber antes de cada
reencarnação, que assim mais não seria do que o regresso, como outra coisa, ao devir
da água ou ao rumor que a dá a ver e a ouvir.
Instalada
em dois pisos do Palácio e num pequeno espaço ao pé do lago, definido entre
duas araucárias do jardim, a exposição é concebida como um subtil site-specific onde, a um primeiro olhar,
a sedentariedade das peças que como tal o definem parece contrariar a vocação
nómada – poder-se-ia dizer metamórfica – das coisas incapazes de se fixar na
intransigência de uma forma única. Mas neste projecto a metamorfose emerge da ressonância
das múltiplas narrativas que se repercutem nas peças fazendo-as reverberar para
além nos espaços que as contêm. Na Sala do Marquês e na sua antecâmara, o fluxo
da água no interior dos limites do engenho de madeira, que ao longo de quase
sete metros as ocupa, é configurado por fios de seda prateada que ressoam nos
fios de algodão branco nascidos de uma estrutura de base circular suspensa no
tecto da Sala de Jantar. Esboço da trama de um tear ou leveza transparente de
uma cortina, estes fios envolvem o interior ocupado por uma cadeira de onde
alguém se ausentou, deixando ficar os instrumentos compatíveis com os dois
sentidos de um movimento inerte. Esta arquitectura que desce do tecto para
abrigar a suspensão da paisagem contida em qualquer espera, tem o seu
equivalente no traçado de linhas construídas com diversos materiais tingidos de
vermelho que terminam nas pedras que as ligam ao solo do jardim e à modificação
da paisagem de lugares incompreensíveis em territórios por decifrar. Penélope e
Ulisses na dupla ausência ou no duplo diferimento que elide o repouso e a
actividade para se prolongar nas longas extensões de fios de algodão branco
que, na Sala de Jogo, sugerem mesas tecidas nas obscuras ligações de sete
cadeiras reconduzidas à elementaridade geométrica das estátuas que ocultam as
ilusões em que as analogias e as esperanças se depositam. Na Sala da Música,
trinta e nove espelhos, montados sobre bases de madeira e colocados no chão, representam
os quarteirões, desenhados por Eugénio dos Santos, no plano de reconstrução da
Baixa de Lisboa. Sobre os espelhos, desenhado com tinta preta, é visível o
traçado da cidade antes do terramoto. E
Lisboa, muitas vezes figurada como uma Fénix Renascida em representações da
época, é agora Eurídice à qual se junta finalmente o reflexo de Orfeu, pintado
no estuque do tecto. Visão e miragem unem-se sem contradições na amnésia dos
espelhos que as inscrições corrompem e a luz projecta nas paredes. Na Copa, uma
gaiola, construída com pequenas peças de madeira encaixadas numa estrutura
desmontável de base hexagonal, remete literalmente para o sistema construtivo
denominado ‘gaiola pombalina’, aplicado na reconstrução de Lisboa. Mas ela traz
também para dentro de casa o pombal que existe no espaço exterior, reduzido
agora à transparência que envolve o interior de onde uma cadeira se ausentou,
como se a sua aparição dependesse de um pré-determinado ponto de vista. Como
acontece na sala onde as quatro superfícies de uma peça dupla, construída em
madeira, aguardam o andar que produz as imagens. Facetas do Marquês ou retratos
instáveis que o movimento activa, esta incompletude – que resulta de uma
ocultação – estende-se à sala onde dois espelhos completam dois desenhos, desse
modo gerando a brevidade de um terceiro desenho, cuja aparição depende de um
ponto no espaço e da presença que o ocupa. E é também no espaço que se concretizam
as linhas delineadas nos nove livros de artista – nove livros de sintéticas
imagens – que temporariamente fazem da Sala dos Reis uma biblioteca. Decorada
com painéis de azulejos que representam Apolo e as nove Musas, esta Sala
desdobra-se nos livros que evocam a Ciência, a História, a Lírica e a Poesia, a
Música, a Tragédia, a Geometria, a Comédia, a Dança, a Astronomia. Desdobra-se,
como todas as outras, na fugacidade das presenças que flutuam, sem jamais se
concluírem, no rumor da água que nos corredores do 1.º piso conduz o observador
à exposição.
É no
implacável devir da água que Carla Rebelo encontra a incessante metamorfose das
coisas que jamais se concluem, porque só a ele e ao seu tempo eternamente
presente elas podem pertencer. Nesse sentido, esta exposição é ainda a
encenação da própria máquina expositiva na qual, preso à coisa que olha, o
observador é o elemento circunstancial que a água acaba de absorver.
Maria João Gamito