O Outro Lado
Exposição individual de escultura e instalação,  2010
Margarida Prieto 

A exposição de Carla Rebelo para a galeria Doispaços nasce do seu interesse pela morfologia deste lugar. As peças, de carácter escultórico e/ou instalativo, são todas inéditas e concebidas para estabelecer uma relação dialógica com a especificidade arquitectónica das salas.

A exposição «o outro lado» estabelece-se dentro de um corpo de trabalho que se fundamenta pela hiper-subjectividade da artista, pela sua percepção do mundo, sempre condicionada pela memória, imaginação, vivências pessoais e forma individual de sentir. Se a construção da realidade depende da sensibilidade perceptiva individual – que é marca distintiva – é então a partir desta consciência perceptiva, e tendo a metáfora como dispositivo de criação, que Carla Rebelo se expõe com um trabalho que enfatiza a sombra num mise-en-scéne e o espelho num mise-en-abîme com contornos invulgares. Histórias invisíveis, secretas ou por contar, estão na génese deste conjunto de trabalhos onde o «eu» está latente e o «tu» é convidado para testemunhar um acontecimento de profunda intimidade, que se lhe oferece, ou antes, que se lhe revela devagar.

Expor é homogeneizar, é apagar a hesitação que antecede toda a escolha autoral para, assim, fixar e impor sentidos. Os títulos das peças desta exposição, bem como o próprio título que as agrupa, funcionam como «laboratório poético» que delimita, por sugestão de um determinado campo imagético, o horizonte de expectativa da experiência estética. O título nomeia, indica ou mostra, designa um conteúdo e exibe-se no seio do conjunto de peças de um mesmo autor, é índice, resumo e fórmula dentro de uma rede que relaciona as obras. A adequação do título nas peças de Carla Rebelo (que aqui citam Fernando Pessoa), conferem-lhes um carácter performativo na medida em que não só as individua como participam da sua própria dimensão plástica.

O outro que era eu

«Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos – que amamos»1

Dois assentos situados à mesma altura estão unidos por uma estrutura que, ao imitar, por repetição, a estrutura de estabilidade das pernas das cadeiras convencionais, sugere, também, um escadote. A peça desenvolve-se em meia-lua, numa semicircunferência cujo ponto de equilíbrio é, em rigor, o que mantém cada um dos assentos, situados nas duas extremidades, nivelados. Trata-se de uma dupla cadeira, metáfora da artista para a «relação perfeita», pois estes assentos enfrentam-se, evocam um par dialogante e frontal e, ao menor toque, toda a estrutura oscila com um balouçar que os faz subir e descer à vez, sempre equidistantes, sempre de frente um para o outro. Esta escultura remete inevitavelmente para o objecto lúdico de infância: o balouço para duas pessoas, que oscila com o peso, será sempre um dispositivo pedagógico e fonte de prazer. Proporciona uma experiência da ordem da física onde o peso, o volume, o equilíbrio e a quantidade interagem na brincadeira.

Se a escada é acesso, aqui é o acesso ao outro. A escultura é a da(s) figura(s) ausentes. Instalada com grande sentido cénico, a peça projecta uma sombra, duplicação planificada do objecto. O «mais um» de uma aparente repetição em sombra é, aqui, confirmação de uma nova entidade com características próprias: um «outro» assombrado ou especular que acompanha sempre a peça escultórica, para a completar, unificar e/ou transfigurar. Também o título acrescenta uma dimensão, produtiva de uma sombra «psicológica» sobre o «outro». É a sombra do próprio «eu», de um «eu» que é, também, projecção especular. Desta forma, a artista formula um jogo de abismos a partir da sombra, duplicando-a real e virtualmente, tornando-a metáfora de projecção especular, (re)dimensionando-lhe os contornos numa oscilação que vai do próprio ao «outro». O jogo de sombras, convocado pela artista, flutua entre identidade e alteridade e é este o movimento que lhe concede um sentido inteiro.

«Sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura» 2

No plano metafórico de Carla Rebelo, a cadeira substitui a presença/ausência de alguém (de um «outro») e também do «mesmo», pois a escultora toma sempre a sua biografia como referência primeira à concepção das suas peças.

Uma cadeira para pessoas muito altas, feita em madeira, depende de um espelho e de uma parede, onde está adossada para se completar no reflexo. Esta completude ilusória dá-se na alteração da aparente morfologia da cadeira, que afecta parcialmente este objecto do assento ao encosto: a cadeira parece estender-se pelo espelho para receber «mais» alguém e, neste movimento, torna-se inteira. O espelho faz parte de um conjunto de estuques-em-moldura, determinantes na caracterização desta sala, herança de outros tempos. Na parede, duas molduras, uma com espelho e outra sem, sugerem um díptico. Se a do espelho passa a concluir a peça da artista, a outra permanece cega. Todo este mise-en-scéne coloca em questão o que é ou não inteiro. A incompletude da cadeira de madeira e da moldura cega, à qual falta um espelho, aparecem como vestígios de uma suposta simetria, apontam a falta de uma duplicação. Esta falta metaforiza a falha: a falha efectiva do discurso em diálogo, que inevitavelmente conduz ao solilóquio.

O título remete para outras lógicas que não as da lei da física, já que a dimensão do contentor não coincide com a capacidade de contenção. A expectativa é a de uma ampliação ou redução do campo da percepção face ao corpo perceptivo.

Desassossego

Uma construção convoca um mecanismo de tecelagem. A gravura em que Carla Rebelo se baseia é uma ilustração oitocentista do tomo «A arte da seda» da enciclopédia visual do conhecimento de Diderot, utilizada para torcer os fios e os espessar no sentido de os tornar cada vez mais resistentes. Das 24 bobines desse mecanismo convocatório estendem-se fios de seda tingidos com pigmento quinacridone, que atravessam a sala para se unirem num único fio que reveste uma mão esquerda. Esta mão sedada, porque imóvel e aprisionada pelos fios de seda, apoia-se sobre uma pequena mesa que lembra um toucador. Tem o seu par numa reflexão especular cujo enquadramento inviabiliza o reflexo da teia de fibras (reais e em sombra) para destacar apenas a mão de seda, sugerindo-a em liberdade. Há então uma mão esquerda aprisionada aos filamentos que lhe condicionam o movimento, e uma mão direita e livre, que resulta de uma ilusão especular. Neste hábil mise-en-scéne, o espelho duplica apenas mão, deixando fugir ao reflexo as linhas que a prendem. Na parede projecta-se em sombra todo este desenho linear.

A realidade parece (re)inventar-se na semelhança especular e na sombra, numa encenação inesperada de projecções onde a metáfora é o recurso que dá visibilidade a várias dicotomias, sendo a mais significativa a sugerida pelo título que nos remete imediatamente para o livro homónimo. No seu ensaio dedicado ao Livro do desassossego de Fernando Pessoa, Maria Augusta Babo desmonta a palavra: «Desassocego pode, assim dividir-se em des-a-so-cego. Retirando-lhe a negação obtém-se o significante socego que, cindido, forma dois outros: só e cego.» As conclusões da autora relativamente ao título deste livro são profundas. No caso da peça de Carla Rebelo o desassossego confirma um estranhamento, uma angústia latente e in-quieta, uma imobilidade que deseja mover-se. É também um murmúrio avisador que leva ao desconfiar do seu sentido de coisa visível (a-parência) na medida em que há um logro visual, uma ilusão especular, um truque que nos convoca para «o outro lado do espelho».

Mapas de crescimento

Cinco mapas bordados numa única peça de linho formulam, cada um, o desenhar de uma topologia autobiográfica (até aos 20 anos) que obedece ao regime ficcional. O título é descritivo: Carla Rebelo evoca a sua casa de infância em Lisboa para reflectir e relembrar diferentes tempos da sua vida. Os critérios são determinados pelas escolas por onde passou até hoje, enquanto aluna, e que lhe definiam não só os percursos mas também o seu conhecimento da cidade de Lisboa.

O processo de representação escolhido é lento: um bordado manual. Cada ponto é como uma passada que, num movimento faz a transposição do hábito de passear onde se propiciam os exercícios de pensar e de relembrar. Sobre este tecido de linho translúcido, as cores escolhidas para o bordado têm, também elas, funções diferentes: o preto indica as especificidades de uma legenda que nomeia e identifica; o ocre define edifícios de referência ao percurso, a saber a casa, a escola, a biblioteca, o museu do traje; o carmesim desenha o próprio esquema da cidade: o mapeamento traduzido num desenho é transposição de passeios mentais continuamente activados por uma memória que se transforma e adapta dentro de um processo de criação esquizofrénico. «Mapas de crescimento» justapõe, sobre a mesma superfície tecida, cinco etapas da vida, cinco tempos consecutivos. Em cada momento a artista exercita (des)multiplicações de si, nesta ou naquela idade para, entre memórias e invenções, (re)construir auto narrativas topológicas.

«Mapas de crescimento» é uma peça onde o direito e o avesso estão em igualdade de protagonismo (ao contrário dos bordados convencionais). O lado direito é o do controlo, da ordem, da regularidade do ponto; do lado avesso há uma inversão do desenho, uma irregularidade do ponto que origina uma perturbação na leitura. O avesso é o inverso. O inconsciente do consciente.

Instalada na vitrina da galeria, procura uma relação com o espaço público. Se o monumento celebra um acontecimento passado tornado marco histórico de comemoração, então o memorial pretende manter presente a memória de um acontecimento que não deve jamais ser repetido, ou seja, é rememoração. Nesta peça de Carla Rebelo direito e avesso, próprio e universal, espaço privado e espaço público, laboram-se como actos de distanciamento e evocação que se re-configuram enquanto memorial.

Construindo-me um novo território a partir de um já conhecido

As peças de Carla Rebelo são geradas a partir de histórias que partem da autobiografia. Por norma ou método, é nelas que se apoia para dar sentido à sua criação. Contudo e porque todo o trabalho artístico nasce de uma compulsão, de um impulso incontrolável, há formalizações que se antecipam às histórias conscientes. São peças que se impõem pela necessidade de concretização e cujas histórias ainda estão no plano do porvir, escondidas no silêncio da memória, sem verbalização ou qualquer outra manifestação que não seja a sua concretude plástica.

É este o caso de «Construindo-me um novo território a partir de um já conhecido». Os caminhos traçados a linha carmesim simulam rotas imaginárias que ligam fragmentos de mapas antigos, fora já de um tempo/espaço actual, de onde foram cortadas as indicações mais identificativas (como, por exemplo, os nomes do rios ou das cidades importantes). Estes fragmentos são reagrupados, pela artista, dentro de um oceano de feltro que foge à cartografia deste ou daquele lugar para se tornar metáfora de uma península imaginada. Aqui, as ilhas parecem estender-se de desenho para desenho, cada um em autonomia, e todos juntos propõem uma organização que é, em si, um novo desenho. É na montagem que nasce este conjunto unitário. Por isso, de cada vez que se instala em exposição, a peça pode apresentar uma combinação distinta, na medida em que Carla Rebelo se apropria (apenas) da imagética do mapa. Ou seja, o seu sentido visual é dissociado da verificação in loco. Porém, ainda que destituído da sua função, as ressonâncias perceptíveis são mais do que suficientes para pensarmos em mapeamento, para tentarmos exercer, sobre estes desenhos, o exercício de reconhecimento.

Conscientes da impossibilidade de uma aferição (de confirmar um lugar e/ou uma localização face ao lugar), fica a surpresa de uma cartografia do ilusório, justamente porque as condições que pré-figuram a própria percepção se mantêm. A memória destes processos de mapeamento, dos seus aspectos esquemáticos que nos conferem condições de construção da imagem, perpassa cada desenho. E porque os processos de semelhança da metáfora se regem por uma dissemelhança adequada em direcção ao visível, cada mapa abre-se como campo para a imaginação.

Jogo de ilusões
Meia-mesa de madeira, meio-livro com capa dura carmesim (cujas páginas foram coladas umas às outras impedindo um folhear) e um espelho (onde a artista intervém directamente com um desenho) são os dispositivos essenciais que se articulam na encenação de «Jogo de ilusões». A duplicação do meio-livro pelo espelho torna-o ilusoriamente completo e aberto, ou seja, o livro vê-se inteiro mas constitui-se por duas metades distintas: uma objectual e outra especular.

Neste livro aparentemente inteiro a artista cria uma ilusão usando uma luz estrategicamente direccionada: trata-se de um desenho «elástico» que se move com a deslocação do observador. O que, de facto, existe é uma intervenção gráfica na superfície espelhada, uma sombra desse registo e a sua projecção. A marca gráfica simula um plano vertical, sugere uma página perpendicular (coincidente com a superfície especular). O espelho participa desta completude porque parece desaparecer enquanto espelho para se camuflar em página transparente, suspensa num movimento do folhear. O suporte plástico tornado, assim, imperceptível, interfere com a percepção porque, dentro uma outra lógica, perturba a reflexão/duplicação especular para, com ela, agir como sinal. Repetindo-se em três intensidades: forte no espelho, médio na sombra, ténue no reflexo dessa sombra, a marca cria, desta maneira, um desenho evocativo de um registo paisagístico. Ilusão que foge à lógica da completude aparente do livro, no limite de uma encenação em abismo que se informa no equívoco visual produzido pelo desenho intervencionado directamente sobre o espelho.

Carla Rebelo define a localização das suas peças de forma a delimitar os trajectos do observador. Antecipa-lhe os movimentos e, consequentemente, a visibilidade dos enquadramentos. O lugar ideal para a fruição de cada peça é previsto, assim como os planos de aproximação, como se, idealmente, o observador cumprisse uma coreografia concebida pela artista. É nesta expectativa de movimentos que as suas peças se instalam e, só quando, diligentemente se obedece a este plano de fruição, elas parecem dar-se a ver.

«Jogo de ilusões» é um título genérico que nos sussurra uma suspeição relativa ao visível e nos apela à desmontagem dos mecanismos ilusionistas em questão: percepciona-se uma página que não é página, e um desenho que se completa na revelação de uma dupla repetição: a página par, especular e a página impar, real – que mais não é do que o topo de um conjunto de várias páginas infolheáveis porque coladas umas às outras constituindo, assim, um sólido volume, um tomo ilegível, apagado numa acumulação que esconde as suas eventuais estórias.

O meio-livro é objectual, um corpo fragmentado, desmembrado por um fazer que tem como horizonte não um leitor mas um observador. É para ver e não para ler. A peça instaura-se a partir de um meio-livro que nem mesmo meio livro é: talvez seja um não-livro, na medida em que dele foi retirada a função. É anónimo, rasurado de qualquer pré-texto próprio. Aliás, se tem título, autor e editor é porque os toma de empréstimo à exposição. Este objecto existe como outra coisa, exactamente como evocação da ideia de livro, desse livro inteiro que é soma de intenções autorais, de leituras e interpretações tão variadas quantos são os que o fruem. A sua única marca visível encontra-se dentro do registo evocativo, que determina as suas páginas de papel envelhecido como o lugar onde a sombra se torna dimensão figural, simultaneamente protagonista e autora de paisagens. A sombra é manifestação de um traço que marcou o espelho tornando-o espaço plástico. É presentificação de uma ausência que foi presença no acto próprio de produção.

Margarida Prieto

Santa Cruz, 27 de Junho de 2010


1 PESSOA, Fernando, Livro do desassossego, Lisboa, ed.Richard Zenith/Assirio &Alvim, p.137
2 PESSOA, Fernando, Livro do desassossego, Lisboa, ed.Richard Zenith/Assirio &Alvim, p.80